O corpo é simbólico. Ser mulher é
simbólico. Ser homem é simbólico. Muitos significados e sentidos estão
concretizados no corpo como um símbolo. A sexualidade, por sua vez, também está
carregada de simbolismos. A perversidade é uma expressão de uma ação (sexual
e/ou violenta) simbolizada, ou seja, está carregada de sentidos e significados.
Melhor dizendo, de sentidos subjetivos, pois são unidades simbólico-emocionais.
Saber traduzir esses símbolos e
interpretá-los é importante para um trabalho psicológico mais coerente e
efetivo. E essa tradução é feita na medida que conseguimos conjugar essa
simbolização na dialógica da pessoa humana e do mundo social. Ambos são
sistemas bastante complexos e cair nos desvios do reducionismo é fácil para qualquer
um de nós. O que quer dizer uma palavra? O que quer dizer um objeto? O que quer dizer uma imagem?
Existe um diálogo entre a pessoa
e a sociedade na dinâmica e no movimento de um e de outro, onde um provoca o
outro constantemente. E a Psicologia Social pode usar de alguns códigos para conseguir
estabelecer uma decodificação coerente, fazer interpretações que passem pelos
sentidos singulares conjugados com os sentidos coletivos das simbolizações.
E algumas vezes as pessoas
pensam, mas não estão produzindo, estão reproduzindo algumas coisas que
escutaram e que passaram a considerar como certas. Quando isso acontece podemos
dizer que as pessoas “são vividas” pelas grandes representações sociais. Na
maioria das vezes isso acontece por uma falta de pensamento crítico e pela
própria configuração da escola, que não nos ensinou a pensar, só a reproduzir
conceitos prontos. Por conta dessa possibilidade de passividade muitas vezes as
pessoas também não “agem” e sim “são agidas”. O grande desafio é discernir onde
acontece o agir ou o ser agido, a voz ativa ou a voz passiva, o ser sujeito ou
o ser objeto da circunstância.
O ser humano precisa estar ciente
de que sua subjetividade é o que lhe fornece seu maior potencial: o
subjetivo criador. Para sairmos do ser passivo e advirmos ao ser sujeito, precisamos de estímulos aos nossos processos reflexivos que permitem um
pensamento mais crítico frente ao ordenamento social.
O nosso potencial subjetivo
criador nos possibilita a construção de universos que conjugam em diferentes
medidas o imaginário e o real. Então perguntamos: Que universo Deuseli criou?
Que universo criaram para ela?
No caso de Deuseli temos mais
perguntas do que respostas e o psicólogo precisa lidar com essa angústia do “não
saber”. Eu, simplesmente, não posso afirmar! Tudo o que posso fazer é ampliar
os questionamentos. Com esse movimento de ampliar questionamentos é que podemos
começar a vislumbrar o não visto.
Quando avalio alguém como: superior
ou inferior, como certo ou errado, como mais ou menos, como maior ou menor,
estou lhe atribuindo um juízo de valor. Então, a psicologia que não julga por
valores, e sim pelo termômetro da humanidade (mundo compartilhado,
singularidade, diversidade e direitos humanos), precisa estar atenta às
afirmações que faz mediante evidências que não são fatos.
Por exemplo, não sabemos por qual
razão Deuseli saiu do hospital. Ouvimos dizer que religiosos evangelizadores
passam pelo hospital, mas não podemos afirmar que foi a influência deles de uma
maneira linear que a fez sair do hospital. E a própria chatice de estar em um
lugar onde nada acontece? E a sensação de que estão me enganando e não vão me
levar ao aborto aqui dentro? E se ela saiu para tentar aborto lá fora, sozinha,
em momentos da trajetória e das vicissitudes das quais não temos relatos? –
Quantas possibilidades.
Por aqui vamos caminhando pelas
linguagens do não dito. As coisas que “ouvimos falar” não são fatos por si só.
São só coisas que ouvimos falar. E essa consciência é fundamental para um
psicólogo. A incerteza é um lugar incômodo e
permanecer nela pode ser ansiogênico, mas nem sempre é possível afirmar com
certeza em se falando de casos que envolvam transtornos psíquicos. A dialógica
do real e do imaginário é traiçoeira, por ser cheia de armadilhas.
Um dos códigos que temos na nossa
cultura é o da machismo, por exemplo. Na nossa cultura é mais fácil ver Deuseli
como vítima do que Nego Vila. Alguém pensou na hipótese de Deuseli ter
estuprado Nego Vila? Ter forjado uma cena, o seduziu, o envolveu e produziu a
loucura, a desmedida, a desarmonia? Ele não parece ter muita consciência de si. Um
coadjuvante interessante para provocar um evento.
Outros símbolos sociais que
aparecem na história são a pobreza, o feminino, o assassinato, as exclusões, os
dogmas com suas prisões, as normatizações e os desvios delas, o Estado e seus
paradoxos contraditórios, a alienação das pessoas sobre a sua condição de
humano.
Precisamos nos questionar:
adianta o direito à vida se não temos direito à sanidade?
Uma reflexão sobre algo é uma
construção pessoal. É conseguir olhar as múltiplas dimensões de um evento
social humano e compreendê-lo por todos os prismas. Quem estava certo no caso
de Deuseli? O que ela está querendo dizer ao mundo como um corpo simbólico?
Quando pensamos em nossas
instituições vemos como todas andam em falência e o quanto precisamos
urgentemente reformulá-las: a escola; a família; a igreja; o estado; o
trabalho. Os sentidos mudam e as instituições precisam acompanhar as mudanças e
não somente ficar atreladas à prisão das tradições.
Deuseli precisava de algo que
poucos de nós temos: o direito de ser humano. Seu corpo virou um símbolo do
descaso, do abandono, da incompreensão, da solidão de ser um num mundo tão
cheio de gente e tão vazio de humanidade.
Essa postagem é uma homenagem à Deuseli, uma anônima brasileira sem rosto, sem vida, sem autonomia, sem chances. Personagem do documentário À margem do corpo, de Débora Diniz.
É uma postagem feita especialmente para os aprendizes de Psicologia Social II do IESB-Oeste, pois assistimos juntos ao documentário para dialogarmos sobre identidade, códigos, papéis sociais, instituições, ser humano, história e cultura. Se quer entender um pouco mais o que aqui se encontra, vale ver o documentário, que está disponível integralmente na internet.
É uma postagem feita especialmente para os aprendizes de Psicologia Social II do IESB-Oeste, pois assistimos juntos ao documentário para dialogarmos sobre identidade, códigos, papéis sociais, instituições, ser humano, história e cultura. Se quer entender um pouco mais o que aqui se encontra, vale ver o documentário, que está disponível integralmente na internet.