Minha razão

Olá!!
Criei esse espaço para postar subjetivações subjetivantes do sujeito que sou!
Filosofia, psicologia, educação.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Para a Psicologia Comunitária e além

       Um dos campos que estudei com mais profundidade nos últimos quatro anos foi a Psicologia Social Comunitária. Esse campo de estudos e de ação (pois em meu entender pode ser considerado uma ciência aplicada) tem nuances desafiadoras, pois trabalha a integração entre a pessoa e seu espaço coletivo e/ou social.
       Para ampliar minha compreensão sobre esse tema da relação entre o singular e o coletivo plural tenho dedicado anos de estudos a alguns autores, dentre eles Edgar Morin, Humberto Maturana, Ilya Progogine, Fernando González Rey, dentre tantos outros. Recentemente tenho dado tempo de estudos à propriocepção e à neuroplasticidade, linhas complementares ao ser psicóloga. Atualmente estou em parceria com Francisco Varela e sua possibilidade de consolidação da ciência em primeira pessoa, estudos que fundamentam a defesa de minha tese da pedagogia de si em si. Talvez eu tenha entrado em campo obscuro, mas talvez eu esteja em campo muito fértil para os tempos atuais do viver humano. O que me faz sentir segurança é Capra e Luisi em seu "A visão sistêmica da vida", laço importantíssimo na tecitura dos nós e fios que sustentam a rede que me sustenta em meus saltos.
          As epistemologias de complexidade e subjetividade nos indicam vias de compreensão do funcionamento dos grupos e dos coletivos. A subjetividade é uma categoria que consegue reunir o todo no campo da psicologia e merece ser estudada para ser bem compreendida, reverberando isso na operacionalização do Todo. A complexidade é o tudo no todo e se auto-define. Eu as trago aqui como fundamento e plataforma.
       Por muito tempo a subjetividade foi tomada só pela singularidade e, portanto, sua compreensão como algo passível de abarcar o grupo demorou para acontecer. Todavia, atualmente já temos a categoria subjetividade colocada como possibilidade de compreensão do todo complexo e as conversas podem subir alguns tons e, quem sabe, algumas escalas.
       Quando falo de psicologia comunitária, falo de trabalho nos sistemas e falo em multidimensionalidades. Na ação concreta de profissional preciso conscientizar-me de qual sistema trabalho: se é o grupo ou a comunidade ou ainda, a sociedade. Esses agrupamentos possuem diferenças qualitativas, mas possuem semelhanças funcionais. Respondem aos mesmos princípios por serem sistemas, mas guardam sempre em si sua característica singular. Esse pensamento os colocam em semelhança, mas nunca em igualdade.
       Nós, como espécie humana, formamos grupos para a nossa sobrevivência e, enquanto grupo, precisamos nos autorregular. Da mesma forma que um sistema vivo se autorregula na sua singularidade (um corpo biológico), também um grupo se autorregula como unidade, como um corpo.
      Como integrante do grupo eu preciso visualizar o que o grupo precisa, para além do que o que eu preciso, ou melhor, do que o Eu precisa. É um exercício difícil conjugar o Eu no Todo sem perder o Eu e sem perder o Todo. E, como tensão inerente, o maior medo do Eu é perder-se para sempre no Todo. Aqui evidencio o que muitos autores colocam como "a morte do ego".
       Um dos tópicos que defendo é que nessas investigações de psiquismo é bom usar o "si mesmo" para descrever ou avaliar uma situação. A referência seria: qual a experiência do "si mesmo"?
       Em tempos de defesa de meu doutorado e não compreendia muito bem, mas hoje entendo por qual razão os doutores e doutoras de minha banca de defesa me interpelaram: que "si mesmo" é esse? - colocando no debate um tom de temor!
       Na minha inquietação sobre o si mesmo, que não pararam após minha defesa de tese, encontrei os debates sobre o self, categoria controvertida nos campos de pesquisas de meus pares. O self fala de si quando deveria falar do outro? Como falar do outro se não por meio do self? Como é possível considerar isso ainda científico? O self existe? Ou ele é um puro reflexo do Outro? Como validar um espelho sem ter clareza do objeto que produz a imagem?
       Aquilo que posso chamar de meu contexto histórico e cultural coloca na conversa assuntos curiosos do tempo contemporâneo em que percebo a Inteligência Artificial não mais como "ficção científica de filme", mas como realidade factual de nosso cotidiano. Ver eleições presidenciais sendo decididas em espaços de IA me indicam isso claramente. Temos ao nosso favor um espaço cognitivo que, cada vez mais, atua de forma interventiva no sentido de ser humano subjetivo no mundo. Estamos vivendo novos modos de subjetivação e ainda não conseguimos alcançar plenamente o que isso representa. A realidade está claramente manipulada e posta ao serviço do imaginário social.
       Então, a Psicologia Comunitária precisa se apropriar cada vez mais do entendimento do que são redes, do que são conexões, do que são tensões e processos, do que são os encapsulamentos, do  que são as ativações, do que é o conhecimento e qual sua relação com a ação, do que é o Todo e do que é o self.
     Como profissional da psicologia prefiro usar a categoria subjetividade à categoria comportamento. Comportamento é uma categoria da mente analítica e essa mente corre o risco de tomar a parte pelo todo. A subjetividade, por sua vez, coloca em evidência a parte, o todo, o passado, o futuro, o singular e o coletivo e auxilia na produção da mente não-analítica e não-linear.
       Subjetividade é o que vivemos agora e no agora está o sujeito. Sujeito, na teoria da subjetividade  de González Rey e também no pensamento de Touraine, é a tensão do singular com o social, algo inerente à condição de ser. Sujeito desperto é bom, mas não é fácil! Muitas vezes a pessoa defende estar posicionada em sua opinião, mas ela está sendo levada pelas tensões do Todo e do histórico-cultural. O estruturalismo defendeu que somos vividos pelo coletivo, que não tem sujeito, Mas a sociologia se curvou ao sujeito, dando seu lugar novamente após seu martírio científico. Como fazer para eu saber se sou sujeito ou se estou assujeitado?
       Nesse sentido, recomendo o espetáculo Nanette, de Hannah Gadsby, disponível na Netflix. A autora e intérprete mostrou seu trabalho com a tensão e fez uma leitura de mundo de impressionar. Seu trânsito pela subjetividade (social, para não perder o sentido de dialógica singular e todo) foi magistral. E ela apresenta o mundo em mudança e a relação da mudança com a resistência.
       Gostei muito desse espetáculo, pois como psicóloga, trabalho com tensão. E é só olharmos um mínimo mais atentos que vemos o quanto nosso mundo de hoje está em tensão. E tensão é espaço para emergência de sujeitos. Ou não!
       Na relação entre o singular e o todo, entre o pessoal e o social, existe um fenômeno que é:
- quanto maior o posicionamento do sujeito, maior a tensão. Essa tensão ou fará revolução ou fará o extermínio do sujeito. É aí que temos as histórias dos heróis, dos mártires e também dos anônimos que vivem um dia após o outro sob uma tensão coletiva que sisma em mover o curso da história.
       Lembro que o foco desse texto é a produção de uma mensagem para a psicologia comunitária. Lembro que não existe outra possibilidade de olhar o mundo que não seja a partir do Eu. Lembro que os estudos do Eu estão entrando nas vias da "mind with no self" e que o Eu precisa ser um agente duplo que transita entre o universo da mente e da não-mente, do ser e do não-ser, do todo e da parte.
       Quando falamos de revolução, de que REVOLUÇÃO estamos falando?
       Eu falo de revolução de percepção! O mundo irá mudar muito quando a percepção mudar. E precisamos considerar nosso lugar de Eu no todo e desenvolver os estudos em primeira pessoa e a partir daí validarmos nossas teorias, ou não.
      Reflexão, posicionamento, ação e conexão. Essas são nossas possibilidade enquanto elétrons disponíveis para um sistema maior. Essa é a dica que dou para os trabalhos sociais comunitários: trabalhar nessas quatro instâncias da circunstância: REFLEXÃO; POSICIONAMENTO; AÇÃO; CONEXÃO.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Notas sobre o filme Anticristo


Notas sobre o filme Anticristo[1]

Toda a história do filme e a escolha do título mostra a importância de primeiro questionar-se: o que é o Anticristo? Quem é o Anticristo?
Da mesma forma, ao perceber que se trata de um filme interessante para trabalharmos na ordem do simbólico, eu lançaria a questão: o que é o simbólico?
Esse é um filme que caracteriza bem a construção mental que mistura e conjuga o imaginário e o real. Os limites entre essas instâncias humanas são tênues e difusos, tal como nos retratou muito bem o filme em questão.
Nesse sentido, vale lançar mais uma pergunta: o que é o imaginário? Recordando que Castoriadis ressalta o quanto o imaginário individual mistura-se com o imaginário social.
O filme parte do corpo, da sexualidade e mistura vida, morte, dor, sofrimento e caos. Junto com todos esses elementos, agregam-se algumas construções simbólicas da humanidade, dentre elas a maternidade, o feminino, a loucura.
Um filme sempre passa pela construção de seu autor, que elabora um roteiro e constrói um enredo para apresentar um espaço reflexivo aos que assistem sua obra. Nossos estudos de psicologia se enriquecem muito com as possibilidades que os filmes nos trazem. No caso específico do filme Anticristo, encontrei os riscos que corremos em nossa profissão ao transitarmos no limite entre a sanidade e a loucura.
Mas, como se construiu o transtorno no filme?
A morte do filho entra como uma situação desencadeante de um quadro mais profundo. Não é ali que o transtorno começa, mas é ali que ele começa a se tornar insuportavelmente manifesto. E o companheiro, sendo um profissional da área psíquica, assume a empreitada de trazer sua mulher de volta ao mundo cotidiano, tentando ajudá-la na sua reconstrução.
O trabalho foi de conhecer-se confrontando seus medos, tentando racionalizar o irracional para poder traduzir a angústia emocional que se materializava em ansiedade corporal. A unidade entre o corpo, a mente, os processos simbólicos e as expressões emocionais são o campo da complexidade onde o profissional irá atuar.
Todavia, no quadro apresentado havia um particular: o profissional estava envolvido emocionalmente na circunstância. E ele corre um risco ao assumir o caso e tirar sua mulher da anestesia do remédio para defrontar seu quadro perturbador.
Em um diálogo que engloba o espaço de morar e o espaço de refúgio, monta-se aos poucos um cenário que culminará na tragédia. A constatação de que a lucidez, há muito, não estava presente, e de que a situação desencadeante da morte inesperada do filho era só uma ponta de um continente mais amplo do inconsciente, vai permeando um caminho. A escolha de um tema para a construção de uma tese de doutorado e a escolha de isolar-se para a produção da escrita acerca do tema, convergem como fonte de produção de sentido subjetivo sobre o ser mulher e estar no mundo, confundindo um pensamento crítico com uma adequação ao pensamento criticado. O ser mulher deixa de ser uma luta pela liberação do feminino para se converter na expressão do mal natural que há na mulher, algo do mais profundo arquétipo de uma sociedade patriarcal e machista. A mulher se converte na algoz de si mesma.
Muito mais do que uma discussão psicológica, o filme nos abre um diálogo aos espaços mais amplos do humano que envolvem o imaginário social e o simbólico. Unido a isso a construção do sujeito em espaços subjetivos de integração entre o sentir no corpo e na alma. As dores, os medos, as inseguranças, as incertezas.
O fenômeno da natureza entra no enredo do filme como o lugar do possível e do impossível. As cenas parecem indicar uma confusão entre o sonho e a realidade. O personagem que estava na busca de uma possível cura começa também a invadir e ser invadido pelo espaço da loucura. Seus sonhos começam a revelar as dinâmicas psíquicas inconscientes que podem ser dele mesmo, mas também dos dramas da mulher. A gazela que abortou seu filho, a raposa que devora a si mesma, o corvo que mostra a noite e o desespero da morte, todos como símbolos que se traduzem numa configuração subjetiva do transtorno de um, que se mistura com o transtorno de outro.
Por um momento parece que o corpo imolado será o do homem. Mas no desfecho, mais uma vez, o corpo imolado é o feminino que, já mutilado, é sufocado. Ao sufocar o feminino a angústia se dissipa no sonho do masculino, vendo-se cercado por pilhas de corpos femininos que transitam sem face, sem uma identidade, sem um destino claro.
A resolução da loucura acaba sendo a própria loucura, algo que desafia o pensamento de nós, psicólogas e psicólogos, que nem sempre alcançaremos a dimensão criativa da mente de um ser que transita nos limites incertos entre o real e o imaginário.
O simbólico é o que está associado ao real na construção de uma representação. O simbólico traduz em algo acessível o inacessível da mente. O imaginário é o espaço criativo de construção infinita. Local onde tudo é permitido, onde a lei não é clara, onde a ordem é e não é necessária.
Lidar com o humano, ser portador de dimensões complementares, ao mesmo tempo que antagônicas, é um desafio ao que se pode chamar de lucidez. Esses espaços que nos desafiam, que nos balançam, são aqueles possíveis do humano: o bem e o mal, a dor e o prazer, o medo e o amor que dá segurança. Saber onde um acaba e o outro começa não é tarefa fácil. Daí a importância de cada um se converter num pesquisador de si mesmo e traçar em si o mapa que poderá dar um suporte necessário ao trabalho nos labirintos da mente imaginária e produtora de sentidos subjetivos que integram a emoção e o simbólico em uma unidade subjetiva.
Assim, para finalizar, volto ao meu ponto de partida: o que é o Anticristo? O que representa simbolicamente em nossa sociedade a imagem do Anticristo? Em poucas palavras, a expressão do medo. Qual medo? O medo da morte. E quem no filme encarnou o Anticristo? Acredito que sociedade, a sociedade cultural-histórica. A sociedade que cria símbolos para o bem e para o mal. No caso em específico, o papel da mulher em nossa sociedade, ou seja, a mãe perfeita que não descuida de seu filho, a mulher passiva que dá prazer ao macho, a mulher que, ao sentir prazer, encarna em si o símbolo do mal, do pecado.



[1] Notas elaboradas pela Prof. Ana Maria Orofino Teles para compor a dinâmica do Núcleo de Estudos Psicologia e Arte, coordenado pelo Prof. João Reis, curso de Psicologia - IESB Oeste, Ceilândia, setembro/outubro de 2015. Filme debatido: Anticristo, de Lars Von Trier, 2009.