Minha razão

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quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Notas sobre o filme Anticristo


Notas sobre o filme Anticristo[1]

Toda a história do filme e a escolha do título mostra a importância de primeiro questionar-se: o que é o Anticristo? Quem é o Anticristo?
Da mesma forma, ao perceber que se trata de um filme interessante para trabalharmos na ordem do simbólico, eu lançaria a questão: o que é o simbólico?
Esse é um filme que caracteriza bem a construção mental que mistura e conjuga o imaginário e o real. Os limites entre essas instâncias humanas são tênues e difusos, tal como nos retratou muito bem o filme em questão.
Nesse sentido, vale lançar mais uma pergunta: o que é o imaginário? Recordando que Castoriadis ressalta o quanto o imaginário individual mistura-se com o imaginário social.
O filme parte do corpo, da sexualidade e mistura vida, morte, dor, sofrimento e caos. Junto com todos esses elementos, agregam-se algumas construções simbólicas da humanidade, dentre elas a maternidade, o feminino, a loucura.
Um filme sempre passa pela construção de seu autor, que elabora um roteiro e constrói um enredo para apresentar um espaço reflexivo aos que assistem sua obra. Nossos estudos de psicologia se enriquecem muito com as possibilidades que os filmes nos trazem. No caso específico do filme Anticristo, encontrei os riscos que corremos em nossa profissão ao transitarmos no limite entre a sanidade e a loucura.
Mas, como se construiu o transtorno no filme?
A morte do filho entra como uma situação desencadeante de um quadro mais profundo. Não é ali que o transtorno começa, mas é ali que ele começa a se tornar insuportavelmente manifesto. E o companheiro, sendo um profissional da área psíquica, assume a empreitada de trazer sua mulher de volta ao mundo cotidiano, tentando ajudá-la na sua reconstrução.
O trabalho foi de conhecer-se confrontando seus medos, tentando racionalizar o irracional para poder traduzir a angústia emocional que se materializava em ansiedade corporal. A unidade entre o corpo, a mente, os processos simbólicos e as expressões emocionais são o campo da complexidade onde o profissional irá atuar.
Todavia, no quadro apresentado havia um particular: o profissional estava envolvido emocionalmente na circunstância. E ele corre um risco ao assumir o caso e tirar sua mulher da anestesia do remédio para defrontar seu quadro perturbador.
Em um diálogo que engloba o espaço de morar e o espaço de refúgio, monta-se aos poucos um cenário que culminará na tragédia. A constatação de que a lucidez, há muito, não estava presente, e de que a situação desencadeante da morte inesperada do filho era só uma ponta de um continente mais amplo do inconsciente, vai permeando um caminho. A escolha de um tema para a construção de uma tese de doutorado e a escolha de isolar-se para a produção da escrita acerca do tema, convergem como fonte de produção de sentido subjetivo sobre o ser mulher e estar no mundo, confundindo um pensamento crítico com uma adequação ao pensamento criticado. O ser mulher deixa de ser uma luta pela liberação do feminino para se converter na expressão do mal natural que há na mulher, algo do mais profundo arquétipo de uma sociedade patriarcal e machista. A mulher se converte na algoz de si mesma.
Muito mais do que uma discussão psicológica, o filme nos abre um diálogo aos espaços mais amplos do humano que envolvem o imaginário social e o simbólico. Unido a isso a construção do sujeito em espaços subjetivos de integração entre o sentir no corpo e na alma. As dores, os medos, as inseguranças, as incertezas.
O fenômeno da natureza entra no enredo do filme como o lugar do possível e do impossível. As cenas parecem indicar uma confusão entre o sonho e a realidade. O personagem que estava na busca de uma possível cura começa também a invadir e ser invadido pelo espaço da loucura. Seus sonhos começam a revelar as dinâmicas psíquicas inconscientes que podem ser dele mesmo, mas também dos dramas da mulher. A gazela que abortou seu filho, a raposa que devora a si mesma, o corvo que mostra a noite e o desespero da morte, todos como símbolos que se traduzem numa configuração subjetiva do transtorno de um, que se mistura com o transtorno de outro.
Por um momento parece que o corpo imolado será o do homem. Mas no desfecho, mais uma vez, o corpo imolado é o feminino que, já mutilado, é sufocado. Ao sufocar o feminino a angústia se dissipa no sonho do masculino, vendo-se cercado por pilhas de corpos femininos que transitam sem face, sem uma identidade, sem um destino claro.
A resolução da loucura acaba sendo a própria loucura, algo que desafia o pensamento de nós, psicólogas e psicólogos, que nem sempre alcançaremos a dimensão criativa da mente de um ser que transita nos limites incertos entre o real e o imaginário.
O simbólico é o que está associado ao real na construção de uma representação. O simbólico traduz em algo acessível o inacessível da mente. O imaginário é o espaço criativo de construção infinita. Local onde tudo é permitido, onde a lei não é clara, onde a ordem é e não é necessária.
Lidar com o humano, ser portador de dimensões complementares, ao mesmo tempo que antagônicas, é um desafio ao que se pode chamar de lucidez. Esses espaços que nos desafiam, que nos balançam, são aqueles possíveis do humano: o bem e o mal, a dor e o prazer, o medo e o amor que dá segurança. Saber onde um acaba e o outro começa não é tarefa fácil. Daí a importância de cada um se converter num pesquisador de si mesmo e traçar em si o mapa que poderá dar um suporte necessário ao trabalho nos labirintos da mente imaginária e produtora de sentidos subjetivos que integram a emoção e o simbólico em uma unidade subjetiva.
Assim, para finalizar, volto ao meu ponto de partida: o que é o Anticristo? O que representa simbolicamente em nossa sociedade a imagem do Anticristo? Em poucas palavras, a expressão do medo. Qual medo? O medo da morte. E quem no filme encarnou o Anticristo? Acredito que sociedade, a sociedade cultural-histórica. A sociedade que cria símbolos para o bem e para o mal. No caso em específico, o papel da mulher em nossa sociedade, ou seja, a mãe perfeita que não descuida de seu filho, a mulher passiva que dá prazer ao macho, a mulher que, ao sentir prazer, encarna em si o símbolo do mal, do pecado.



[1] Notas elaboradas pela Prof. Ana Maria Orofino Teles para compor a dinâmica do Núcleo de Estudos Psicologia e Arte, coordenado pelo Prof. João Reis, curso de Psicologia - IESB Oeste, Ceilândia, setembro/outubro de 2015. Filme debatido: Anticristo, de Lars Von Trier, 2009.

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