Notas sobre o filme
Anticristo[1]
Toda a história do filme
e a escolha do título mostra a importância de primeiro questionar-se: o que é o
Anticristo? Quem é o Anticristo?
Da mesma forma, ao
perceber que se trata de um filme interessante para trabalharmos na ordem do
simbólico, eu lançaria a questão: o que é o simbólico?
Esse é um filme que
caracteriza bem a construção mental que mistura e conjuga o imaginário e o
real. Os limites entre essas instâncias humanas são tênues e difusos, tal como
nos retratou muito bem o filme em questão.
Nesse sentido, vale
lançar mais uma pergunta: o que é o imaginário? Recordando que Castoriadis ressalta
o quanto o imaginário individual mistura-se com o imaginário social.
O filme parte do corpo,
da sexualidade e mistura vida, morte, dor, sofrimento e caos. Junto com todos
esses elementos, agregam-se algumas construções simbólicas da humanidade,
dentre elas a maternidade, o feminino, a loucura.
Um filme sempre passa
pela construção de seu autor, que elabora um roteiro e constrói um enredo para
apresentar um espaço reflexivo aos que assistem sua obra. Nossos estudos de
psicologia se enriquecem muito com as possibilidades que os filmes nos trazem. No
caso específico do filme Anticristo, encontrei os riscos que corremos em nossa
profissão ao transitarmos no limite entre a sanidade e a loucura.
Mas, como se construiu o
transtorno no filme?
A morte do filho entra
como uma situação desencadeante de um quadro mais profundo. Não é ali que o
transtorno começa, mas é ali que ele começa a se tornar insuportavelmente
manifesto. E o companheiro, sendo um profissional da área psíquica, assume a
empreitada de trazer sua mulher de volta ao mundo cotidiano, tentando ajudá-la
na sua reconstrução.
O trabalho foi de
conhecer-se confrontando seus medos, tentando racionalizar o irracional para
poder traduzir a angústia emocional que se materializava em ansiedade corporal.
A unidade entre o corpo, a mente, os processos simbólicos e as expressões
emocionais são o campo da complexidade onde o profissional irá atuar.
Todavia, no quadro apresentado
havia um particular: o profissional estava envolvido emocionalmente na
circunstância. E ele corre um risco ao assumir o caso e tirar sua mulher da
anestesia do remédio para defrontar seu quadro perturbador.
Em um diálogo que engloba
o espaço de morar e o espaço de refúgio, monta-se aos poucos um cenário que
culminará na tragédia. A constatação de que a lucidez, há muito, não estava
presente, e de que a situação desencadeante da morte inesperada do filho era só
uma ponta de um continente mais amplo do inconsciente, vai permeando um caminho. A escolha de um tema para a construção de uma tese de doutorado e a
escolha de isolar-se para a produção da escrita acerca do tema, convergem como
fonte de produção de sentido subjetivo sobre o ser mulher e estar no mundo,
confundindo um pensamento crítico com uma adequação ao pensamento criticado. O
ser mulher deixa de ser uma luta pela liberação do feminino para se converter
na expressão do mal natural que há na mulher, algo do mais profundo arquétipo
de uma sociedade patriarcal e machista. A mulher se converte na algoz de si
mesma.
Muito mais do que uma
discussão psicológica, o filme nos abre um diálogo aos espaços mais amplos do
humano que envolvem o imaginário social e o simbólico. Unido a isso a
construção do sujeito em espaços subjetivos de integração entre o sentir no
corpo e na alma. As dores, os medos, as inseguranças, as incertezas.
O fenômeno da natureza entra no
enredo do filme como o lugar do possível e do impossível. As cenas parecem
indicar uma confusão entre o sonho e a realidade. O personagem que estava na
busca de uma possível cura começa também a invadir e ser invadido pelo espaço
da loucura. Seus sonhos começam a revelar as dinâmicas psíquicas inconscientes
que podem ser dele mesmo, mas também dos dramas da mulher. A gazela que abortou
seu filho, a raposa que devora a si mesma, o corvo que mostra a noite e o
desespero da morte, todos como símbolos que se traduzem numa configuração
subjetiva do transtorno de um, que se mistura com o transtorno de outro.
Por um momento parece que
o corpo imolado será o do homem. Mas no desfecho, mais uma vez, o corpo imolado
é o feminino que, já mutilado, é sufocado. Ao sufocar o feminino a angústia se
dissipa no sonho do masculino, vendo-se cercado por pilhas de corpos femininos
que transitam sem face, sem uma identidade, sem um destino claro.
A resolução da loucura
acaba sendo a própria loucura, algo que desafia o pensamento de nós,
psicólogas e psicólogos, que nem sempre alcançaremos a dimensão criativa da mente de um ser
que transita nos limites incertos entre o real e o imaginário.
O simbólico é o que está
associado ao real na construção de uma representação. O simbólico traduz em
algo acessível o inacessível da mente. O imaginário é o espaço criativo de
construção infinita. Local onde tudo é permitido, onde a lei não é clara, onde
a ordem é e não é necessária.
Lidar com o humano, ser
portador de dimensões complementares, ao mesmo tempo que antagônicas, é um
desafio ao que se pode chamar de lucidez. Esses espaços que nos desafiam, que
nos balançam, são aqueles possíveis do humano: o bem e o mal, a dor e o prazer,
o medo e o amor que dá segurança. Saber onde um acaba e o outro começa não é
tarefa fácil. Daí a importância de cada um se converter num pesquisador de si
mesmo e traçar em si o mapa que poderá dar um suporte necessário ao trabalho
nos labirintos da mente imaginária e produtora de sentidos subjetivos que
integram a emoção e o simbólico em uma unidade subjetiva.
Assim, para finalizar, volto
ao meu ponto de partida: o que é o Anticristo? O que representa simbolicamente
em nossa sociedade a imagem do Anticristo? Em poucas palavras, a expressão do
medo. Qual medo? O medo da morte. E quem no filme encarnou o Anticristo?
Acredito que sociedade, a sociedade cultural-histórica. A sociedade que cria
símbolos para o bem e para o mal. No caso em específico, o papel da mulher em
nossa sociedade, ou seja, a mãe perfeita que não descuida de seu filho, a
mulher passiva que dá prazer ao macho, a mulher que, ao sentir prazer, encarna
em si o símbolo do mal, do pecado.
[1]
Notas elaboradas pela Prof. Ana Maria Orofino Teles para compor a dinâmica do
Núcleo de Estudos Psicologia e Arte, coordenado pelo Prof. João Reis, curso de Psicologia - IESB Oeste, Ceilândia, setembro/outubro de
2015. Filme debatido: Anticristo, de Lars Von Trier, 2009.
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