Minha razão

Olá!!
Criei esse espaço para postar subjetivações subjetivantes do sujeito que sou!
Filosofia, psicologia, educação.

segunda-feira, 31 de julho de 2017

Liévin, um ser apaixonante

     
       Gosto de me inspirar nos livros que leio. Gosto de desdobrar pensamentos a partir do encontro com autores, dos mais diversos. Segue aqui mais uma construção derivada de um desses encontros marcantes: o meu com Liévin.
       Soube pelos e-mails de um dos grupos de pesquisa do qual faço parte, que González Rey havia indicado a leitura de Anna Kariênina para que o grupo compreendesse aspectos relevantes da teoria da subjetividade. Uma colega compartilhou a obra e salvei em meu tablet, para ler nas férias de verão, afinal, fiquei curiosa e estava sem tempo para atualizar as leituras mais técnicas desse grupo.
       Comecei a leitura nas férias e identifiquei-me com Anna, algo até fácil para outra Ana. E apreciei o início do livro. Mas, ao ler mais, encontrar história longa, perceber a amplitude da construção do autor e, também, pelo fato concreto de não ter conseguido ler toda a obra ao longo do período de férias de verão, abandonei a leitura. E abandonei acreditando que não a retomaria mais, afinal, a história ficou desinteressante também.
      Passa o semestre, vem recesso e saio de novo para um intervalo no trabalho. Ao pensar na leitura da viagem percebi que não queria carregar pesos e lembrei do livro que eu tinha no tablet, mas nesse momento não tinha mesmo intenção de retomar sua leitura, só fiquei tranquila, pois teria uma leitura.
       Foi no vôo de volta, após diálogos com a filha sentada ao lado, após alguns jogos de paciência, após verificar a revista à bordo e, percebendo que nos faltavam 30 minutos de viagem, resolvi abrir o livro. E a partir desse momento re-encadeei uma leitura da qual não consegui mais me apartar. Afloravam em meu pensamento compreensões interessantes sobre as configurações subjetivas que integram pensamentos singulares com circunstâncias sociais concretas, identificava aqui e ali situações que representariam produções de sentido e a emergência ou não de sujeitos e, por essas e por outras, não consegui largar o livro enquanto ele não chegou ao seu final. 
       E eis que chego aos finais da obra e encontro a questão existencial de Liévin, personagem que me encantou e cativou ao longo de toda a obra. A história de Anna, que envolve Kitty, Vrónski e Liévin, encontra seu centro: o conflito existencial de Liévin.
       Assim, nos capítulos XII e XIII da parte VIII, embarco na viagem reflexiva de Liévin e compreendo com ele várias das aprendizagens que pude reunir de meus mestres-professores ao longo de meu tempo de vida de estudos e construções. Dialeticamente a história de Liévin, que deve representar questionamentos existenciais do próprio autor, mistura-se com a minha, levando a mim mesma às produções de sentidos e à construção de novas zonas de sentido.
       Viver, pensar ... Liévin afirma que vivia bem, e pensava mal.
      Eu posso viver sem a consciência disso, de que vivo bem e penso mal. Posso viver sem ter a consciência de que a vida é binária, a fome é binária, é sim e não  ou mata e come, ou é comido e morto!   Liévin, então, compreende que vivia graças às suas crenças, e não graças às suas necessidades, pois, se vivesse pelas necessidades, mataria, usurparia, violentaria. E eu compreendo todo o desdobramento complexo dessa relação do pensar de Liévin sobre o seu viver.
       O conflito existencial de Liévin me conduz à compreensão de que o viver é binário e o pensar seria o elemento que monta um sistema ternário. O pensar não é a dialética com o viver, pois a dialética, ou dialógica, é a própria vida, ou a vida mesma. O pensar já é o terceiro elemento. E do pensar em dialógica com o viver binário, evidencia-se o elo que os vincula, o elo que os movimenta: o sentir. Então, o sentir monta um sistema quaternário. Com o quartenário possível, alcança-se o espiritual, o transcendente, que nos leva de volta ao uno, num ciclo sem fim do fluxo do ser, da consciência.
       Essa seria a resolução do conflito existencial de Liévin? Ele fala:
       "Procurei a resposta à minha pergunta. Mas tal resposta não poderia ser fornecida pelo pensamento - o pensamento e a pergunta são incomensuráveis. Foi a própria vida que me deu a resposta, com base no meu conhecimento do que é bom e do que é mau. E esse conhecimento eu não adquiri de coisa alguma, ele me foi dado junto com tudo o mais, e me foi dado porque eu mesmo não poderia obtê-lo em parte alguma."
       O personagem compreende que viveu graças às crenças em que foi educado. Sua compreensão significa que viveu ao todo, e não à fome da parte. Nessa resolução existencial compreendemos que o todo é complexo. O binário é movido pelo pensar ternário, que desencadeia o elo entre o viver e o pensar, que é o sentir, construindo o quaternário. Do quaternário, o pentagrama. O Humano é um pentagrama, já expresso por pensadores ancestrais. No pentagrama é onde acontece a organização da consciência. Para Liévin, foi o encontro com a fé como uma experiência única que está para além de toda e qualquer doutrina ou instituição. Em mim, encontro o todo. E só consigo isso, esse encontro com o todo, porque estou no mundo da troca, da inter-relação e da construção cultural-histórica humana.
       Liévin compreende que tem algo maior que o sustenta e do qual ele faz parte e, na resolução de seu conflito existencial, compreende que não pode destruir aquilo que lhe permite viver. E aí está a base do pensamento ecológico. A resolução de seu paradoxo chega quando lembra de uma cena de sua cunhada educando seus sobrinhos: as crianças, imersas na sua i-razão, ainda não podem compreender. Mas ele, agora, compreendia. A mãe, amorosamente, passa à lógica à criança. Uma lógica que para ela é ilógica. Mas essa lógica passada pela mãe é o que vai ajudar depois, na nossa própria construção de sentido, indicando que o sujeito não está separado de um todo. Tudo é importante: o processo é um todo e no todo tudo faz sentido, não só na parte individual tão valorizada nas sociedades individualistas.
       Ao ler o livro vejo a expressão mesma da subjetividade se organizando entre o pensar e o viver. Vejo a emoção entrando e dialogando com os simbólicos. Aprendo sobre a relação da subjetividade com a consciência e fortaleço toda a minha aprendizagem pessoal sobre a ecologia e a ciência em primeira pessoa.
       Impossível não registrar esse processo reflexivo. Impossível não aproveitar a viagem de Tolstói no século XIX, trazendo para nós tão vital saber para o século XXI. Grata, Tolstói! Liévin tinha conflitos com o divino e quando o resolve percebe que nas relações ele ainda é humano mas, em seu íntimo, já não o é mais.

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