Minha razão

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Filosofia, psicologia, educação.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Pierre Rivière e as traduções de sua ação

       Aos que estudam psicologia, e querem sustentar o título de profissional do psique, recomendo a leitura de "Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão", coordenado por Michel Foucalt e publicado em 1973.
       Essa obra mostra o cuidado que precisamos ter ao estarmos no nosso lugar de "intérpretes" do psiquismo. Primeiro por que Foucalt sempre lembra da relação entre poder e conhecimento. Depois por que, ao estarmos cientes da subjetividade, sabemos que não basta ouvir por uma via, pois isso despreza todas as outras múltiplas vias de compreensão de uma história. E, por fim, por nos ensinar sobre as disputas entre saberes que levam ao assassinato do sujeito da ação. 
       O assassinato do sujeito da ação nessa obra culmina com o desrespeito ao sentido que o sujeito queria dar à sua vida, que seria a sua morte. No caso relatado, um fato ocorrido em 1835, uma ação revela alguém que matou para morrer. Um Eu que não matou, mas que morreu. Um Eu que matou para matar a si. Como condenar? Como traduzir?
       A discussão que está em foco é a disputa entre dois saberes superiores: o médico e o jurídico. Esses dois saberes, no tempo em questão, divergem sobre a razão e a des-razão. Se a ação é um discurso, o que ela fala? Quem eu vejo na ação? Um louco ou uma besta? Um delírio ou uma intenção? O curioso é que aquilo que para uns era sinal de loucura, para outros era sinal de lucidez.
       Destaca-se o contexto tão bem trabalhado pelos autores do livro, uma época em que a morte entra em foco e a justiça debate o matar em glória de soldado, que é o matar autorizado pela sociedade, e o matar do assassino frio, aquele sem louvor e colocado em tom de desprezo. Ambos são matar, mas são pesos distintos numa sociedade que se faz hipócrita. O assassinato torna imortal o guerreiro, mas garante o nome sombrio do criminoso. Que linha tênue habita o intervalo entre o legítimo e o ilegítimo na ação de finalizar a vida de outrem. É o próprio Foucalt que debate o cuidado em que se operam as divisões entre o "gesto glorioso do soldado" e o "ato vergonhoso do assassino". Nessa linha se forma uma sociedade patriarcal que tem no poder da vida e da morte o seu desdobramento. Como manter a integridade social quando alguns são autorizados a matar?
       O encanto nessa obra mora na elucidação de quatro vozes: a do sujeito da ação, a do povo em torno da ação, a do saber judiciário e a do saber médico. Quatro séries de discursos que indicam deslizamentos de sentidos e contradições. O objetivo do grupo de trabalho que Foucalt coordenou e que resultou na obra publicada foi: "explicar como se operam os deslizamentos, como se determinam estas contradições" partindo de confrontações entre essas quatro narrativas.
       O mais incrível dessa aventura é ver que numa mesma ação interpreta-se o sujeito como louco ou como um gênio, como um idiota ou como um ser extremamente sagaz. Na verdade, o que está em jogo é o assassinato do sujeito, só que no caso de Pierre Rivière não conseguem. Ele se faz sujeito de sua intenção até o fim.

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